Mensagens infectadas: o surto de desinformação e a polarização da pandemia no Brasil

O combate à Covid-19 no Brasil assumiu contornos ideológicos, opondo apoiadores do presidente e defensores das regras ditadas pela OMS. A desinformação contaminou o debate público. Na esteira da histórica desigualdade social brasileira, as populações pobres são as mais vulneráveis - mas também buscam soluções próprias.

 

Pessoa de máscara na janela segura celular
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Pessoa de máscara na janela com celular na mão

Em meados de maio, com o número de casos de Covid-19 disparando, a pandemia era o assunto preferido dos brasileiros, embora nem sempre as conversas demonstrassem compromisso com os fatos. Durante uma ida à feira livre para comprar alimentos, a moradora da zona Norte de São Paulo Andréa Cristina da Silva ouviu uma teoria da conspiração que parecia peça de ficção científica. “As pessoas comentavam que não deveríamos nos preocupar com a Covid-19 porque a China está produzindo um vírus ainda pior, transmitido como a Dengue, por picada de mosquito”, conta.

Nas principais cidades do país estava proibida a abertura de serviços não-essenciais, porém pequenos comerciantes burlavam as regras e atendiam clientes às escondidas. Mas a desinformação se espalhou no país em alta velocidade graças às plataformas digitais, especialmente pelo circuito WhatsApp-YouTube. Assim é chamado o ambiente digital onde circulam conteúdos em forma de imagens e vídeos curtos, facilmente compartilhados por uma população pouco letrada, em que 97% das pessoas acessam a internet por smartphones.

Segundo a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), 73% das notícias falsas sobre a pandemia até agora foram disseminadas pelo WhatsApp, cujo uso no Brasil vem ganhando cada vez mais contornos de rede social. É comum a formação de grupos públicos, com pessoas desconhecidas reunidas em torno de interesses compartilhados. Além disso, praticamente todos os usuários do app participam de grupos com conhecidos — família, colegas de trabalho, vizinhos, membros da igreja e outros. Por ser uma plataforma fechada e criptografada, o WhatsApp é território fértil para a disseminação rápida e não-detectada de notícias falsas sobre diversos temas.

Caminho livre para a desinformação

“As pessoas aglomeradas repetiam: ‘são assaltantes, querem arrombar as casas…’, e eu tinha a sensação de estar à beira de um linchamento”, desabafa Ângela (que prefere o anonimato), pesquisadora do Ibope, importante instituto de pesquisas brasileiro. Assim ela foi recebida em Macaé, no norte do estado do Rio de Janeiro, quando tentava aplicar formulários e testes rápidos para o Epicovid -19, maior estudo populacional sobre o coronavírus no Brasil, uma iniciativa do Ministério da Saúde em parceria com a Universidade Federal de Pelotas, no sul do país. O caso de Ângela não foi isolado: muitas prefeituras não foram avisadas sobre a presença dos pesquisadores, por falta de coordenação entre os níveis federal, estadual e municipal. A ausência de informações oficiais ampliou a disseminação das notícias falsas e a desinformação foi rápida, eficiente e perigosa: “Antes de a pesquisa ser realizada já havia campanhas digitais para os moradores não abrirem a porta para pesquisadores, pois eles não tinham formação na área de saúde”, relata Ângela, que abandonou o trabalho por não se sentir segura em campo. “Disseram em grupos de WhatsApp que estávamos coletando o DNA das pessoas e até transmitindo o vírus”, relata Elza Souza, outra entrevistadora. Em muitos municípios, entrevistadores foram vítimas de dois grandes problemas que o país enfrenta durante a pandemia: a desinformação e a polarização política da crise de saúde.

Pandemia como ideologia

Como tem acontecido com praticamente todos os assuntos que ganham o debate público no Brasil desde 2013, as informações sobre a pandemia assumiram um caráter altamente polarizado. “Toda vez que há um grande acontecimento, aumenta o número de fake news. Tudo vira uma guerra de narrativas, com as pessoas tentando convencer umas às outras de um ponto de vista que elas já têm”, avalia Gilberto Scofield Jr., diretor de Estratégias e Negócios da Lupa, uma das maiores agências de checagem de fatos do Brasil. Para ele, os brasileiros têm um nível baixo de alfabetização digital, e isso leva as pessoas a compartilhar conteúdos que não são capazes de avaliar corretamente. Por outro lado, ele afirma: “tem gente ganhando dinheiro para produzir e compartilhar notícias falsas, defender ou atacar pontos de vista, mexer com reputações ou desacreditar um grupo”.

Durante o período de isolamento social, que nas principais metrópoles brasileiras teve início em meados de março, a polarização se traduziu na formação de dois grupos informais apelidados, nas redes sociais, de “quarenteners” e “cloroquiners”. Os primeiros defendem a adoção de medidas baseadas nas recomendações de cientistas e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já o segundo grupo, alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, conhecido internacionalmente por suas declarações negacionistas, defende que o tratamento com a cloroquina seja amplamente adotado no sistema de saúde pública do país como forma de tratamento a casos leves e agudos da doença. Desta forma, defendem os “cloroquiners”, a atividade econômica seria retomada mais rapidamente, com a reabertura do comércio e o afrouxamento das restrições à circulação de pessoas. Mesmo depois que os poucos estudos sobre o medicamento foram desacreditados, continua o compartilhamento de conteúdos falsos sobre sua suposta eficácia.

Para Manoel Fernandes, fundador da Bites, consultoria especializada em análises digitais, a polarização baseada na desinformação está prejudicando o debate público a respeito da Covid-19 no Brasil. “Qualquer mensagem fica politizada, e isso prejudica quem realmente precisa de informações”, afirma. Para ele, a sociedade precisa discutir em que circunstâncias a quarentena faz sentido, onde o isolamento pode ser parcial e onde é necessário lockdown, mas os termos em que o debate vem sendo feito impossibilitam uma discussão baseada em consensos científicos. “Os apoiadores de Bolsonaro nunca tiveram compromisso com a verdade, e as informações se tornaram partidarizadas. Nosso país deverá ser o único a sair dessa fase da pandemia com uma crise política para resolver, além da sanitária e econômica”, afirma.

O “gabinete do ódio”

A crise política à qual Fernandes se refere tem vários aspectos, mas talvez o de maior impacto na prevenção seja a atuação de uma equipe supostamente ligada à presidência da República que ficou conhecida nacionalmente como o “Gabinete do Ódio”. Desde o final de 2019 sob investigação, tanto pela Polícia Federal quanto por uma comissão parlamentar de inquérito, funcionários do governo federal e os filhos do presidente Bolsonaro são suspeitos de produzir e impulsionar notícias falsas nas redes sociais, financiadas com dinheiro público e doações de empresários.

O grupo, juntamente com outras milícias digitais especializadas em atacar reputações de adversários do governo, é acusado de adotar diversas táticas para disseminar rapidamente a desinformação a serviço de sua agenda política. Uma das mais frequentes é a utilização de robôs para dar tração a notícias falsas no Twitter, a rede mais usada pelo presidente e seus filhos — três dos quais são parlamentares,  dois deles eleitos em 2018. Tweets e hastags idênticos são replicados aos milhares, não apenas contando a mesma história, mas com as mesmas palavras e até os mesmos erros ortográficos. Durante a pandemia, uma das histórias falsas contava que o primo do porteiro de um prédio teria morrido por causa da explosão de um pneu, porém o atestado de óbito indicaria a Covid-19 como causa da morte, indicando uma suposta sobrenotificação de casos da doença. Usuários do Twitter denunciaram dezenas de diferentes perfis que contavam exatamente a mesma história. Outra ficção que ficou famosa era o relato de alguém sobre uma suposta filha, funcionária de uma agência bancária, curada após o uso da cloroquina quando tinha sintomas brandos. Assim como no caso do primo do porteiro, a filha bancária apareceu em dezenas de perfis. Histórias como essas serviram para reforçar o falso paradoxo entre economia e saúde, bastante explorado pelo governo federal e seus aliados como justificativa para a ausência de medidas mais firmes de prevenção por parte das autoridades de saúde pública.

Ameaça invisível

O negacionismo em relação a uma doença contagiosa e potencialmente letal como a Covid-19 ganha contornos particularmente graves em um país como o Brasil, onde quase 12 milhões de pessoas vivem em favelas (comunidades de baixa renda com condições precárias de infraestrutura urbana). Um dos desafios é o fato de 14% dos domicílios do país não terem abastecimento regular de água, o que inviabiliza a prevenção mais básica à doença: lavar as mãos com frequência. A sociedade brasileira é uma das mais desiguais do mundo, e isso se reflete na dificuldade de prevenção na população mais pobre. A primeira morte confirmada no estado do Rio de Janeiro vitimou uma empregada doméstica cuja patroa voltou infectada da Itália no início de março. A patroa sobreviveu. Casos semelhantes aconteceram em outras metrópoles brasileiras, deixando claro que a epidemia ameaçava a todos, mas atingiria mais a população vulnerável.

Melissa Cannabrava, coordenadora de comunicação do jornal comunitário Voz das Comunidades, produzido por moradores de favelas do Rio de Janeiro, aponta uma questão que dificultou a prevenção: “no início, as pessoas não acreditavam, não entendiam como uma doença invisível podia matar”. Ela relaciona esse ceticismo à violência presente no dia a dia dessa população. “Estamos falando de territórios que convivem diariamente com tiroteios, e as pessoas continuam andando normalmente”, explica.

Cíntia Gomes, da agência Mural, que atua nas periferias de São Paulo, ressalta o esforço da imprensa para orientar a população sobre os cuidados que devem ser tomados para prevenir a doença. O problema é que as notícias falsas se espalham com mais facilidade, já que a informação chega primeiro pelos smartphones. “O poder das notícias falsas segue na direção contrária à luta pela sobrevivência e contribui para potencializar as mortes nas periferias”, afirma. Uma pesquisa da Avaaz realizada nos Estados Unidos, Itália e Brasil aponta que os brasileiros são o povo mais propenso a acreditar em notícias falsas (73% dos pesquisados acreditaram em pelo um conteúdo falso relacionado à pandemia). “Enquanto isso”, diz Cíntia, “o número de óbitos avança para as bordas da cidade”.

Luta contra a desinformação

Em meio esse cenário, as plataformas das redes sociais assumiram um discurso público de combate à desinformação. No entanto, ainda não foram apresentadas práticas consistentes de enfrentamento do problema. Até o momento, sua atuação tem se limitado a ações pontuais e de impacto midiático: tanto o Twitter quanto o Facebook apagaram posts do presidente brasileiro, alegando que contrariavam as recomendações da OMS.

Para tentar conter o aumento da circulação de notícias falsas durante a pandemia, tanto as plataformas de conteúdo quanto as de checagem de fatos criaram seções específicas para conteúdos sobre a Covid-19. Entre outras iniciativas, a agência Lupa criou uma newsletter distribuída gratuitamente para profissionais e secretarias de saúde de todo o país. O conteúdo é replicado nas plataformas digitais de entidades e pessoas que atuam na linha de frente, dando capilaridade às informações confiáveis. A Lupa também tem projetos em parceria com a IFCN (Internacional Fact-Checking Network), a Latam Chequea, que reúne plataformas de checagem de 20 países da América Latina, o Facebook e o Google.

Nas favelas também há projetos em andamento para reduzir os danos causados pela desinformação. O Voz da Comunidade lançou um aplicativo, em parceria com o consulado americano no Rio de Janeiro, que divulga conteúdos verificados. “A gente recebe o material e coloca no aplicativo se é verdade ou não. No Complexo do Alemão (que reúne 13 favelas da cidade) temos recebido muitas perguntas”, conta Melissa. Já a agência Mural criou o podcast “Em Quarentena”, de olho na agilidade do WhatsApp. Com duração de 5 a 10 minutos diários, o podcast desmente notícias falsas e divulga informações de prevenção para as comunidades de baixa renda de São Paulo. Os episódios são distribuídos por meio de listas de transmissão do WhatsApp e pelo Spotify. A preferência pelo WhatsApp, explica Cíntia, se deu por conta do alcance, “mas também porque sabemos que é por ali que a circulação de notícias falsas acontece”. O podcast da agência Mural divulgou diversas iniciativas de combate à desinformação de diferentes regiões economicamente carentes do país. A população da periferia compreendeu a importância de uma comunicação honesta, transparente e digna de credibilidade. Por isso, hoje essa é uma de suas lutas, juntamente com o básico, como acesso à educação e saúde de qualidade. Sem espaço e voz na mídia tradicional, eles são a cada dia mais produtores de notícia e donos de suas próprias narrativas.